Para o presidente da Organização das Cooperativas Brasileiras, Márcio Lopes de Freitas, próximo ano será de dificuldades, mas setor vai conseguir superar o pós-crise.
Com muito ajuste e adaptações, 2020 acabou se consolidando como um ano extremamente positivo para as cooperativas agropecuárias. “A máquina cooperativa não parou”, resume o presidente da Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), Márcio Lopes de Freitas.
Os preços agrícolas em alta contribuíram em boa medida para esse sucesso, relata Freitas. Mas os bons resultados alcançados espelhariam um investimento em profissionalização que vem sendo realizado ao longo das últimas décadas. “Há um momento de prosperidade, eu diria assim, de desenvolvimento no modelo cooperativista agropecuário”, afirma o presidente da OCB.
Para o próximo ano, a expectativa de Freitas é de enfrentamento de desafios. “Sou otimista, mas não posso ser tolo. Nós sabemos que o ano de 2021 é um ano de retomada, e ainda teremos um ano de muita dificuldade”, diz. Criatividade, inovação, integridade e sustentabilidade serão as armas do cooperativismo para vencer essa batalha.
Confira a íntegra da entrevista com Márcio Lopes de Freitas, da OCB:
Canal Rural – Como foi o ano de 2020 para o cooperativismo?
Márcio Lopes de Freitas – Ano positivo. Era um ano para termos todos os ânimos e entusiasmo. Aí entrou o processo da pandemia e causou um choque, muito ajuste, muita adaptação e planejamento. Mas ele acabou se tornando um ano extremamente positivo, principalmente para as cooperativas agropecuárias, que mantiveram suas atividades. Os preços agrícolas permaneceram em alta em praticamente todos os produtos. Com algumas exceções, tivemos um bom desempenho de preço e, com isso, as cooperativas se mantiveram. Não houve um impacto tão negativo. O impacto que houve do coronavírus foi um avanço do processo de comunicação virtual, por uma adequação de negócio.
Mas eu acredito que as cooperativas, de uma maneira geral, souberam atuar muito bem nisso e não pararam a máquina. A máquina cooperativa rodou muito bem, não houve o recuo que nós percebemos em algumas empresas, de alguns setores. Houve até um cuidado, um tranco, uma sensação de risco, mas esse risco foi mensurado e foi superado com um redirecionamento.
Acho que isso mostra muito bem um processo, um momento de profissionalização do setor cooperativista brasileiro. É um setor que está vivendo um momento muito positivo nesse aspecto da profissionalização. Está se separando muito bem o que é governança do que é gestão do negócio. Então isso tem amadurecido e tem trazido resultado. Em alguns estados, como Paraná, Santa Catarina, isso é muito visível e muito tradicional, mas não podemos dizer que isso aconteceu no país todo. O Rio Grande do Sul, que viveu uma crise do setor causado por problemas climáticos em anos anteriores, também está fechando um ano muito positivo. As cooperativas agrícolas de São Paulo também estão bem. Aqui, no Centro-Oeste [Lopes estava em Brasília], as cooperativas estão fechando seus balanços com saldo positivo, distribuindo as sobras do ano para os cooperados. Então há um momento de prosperidade, eu diria assim, de desenvolvimento no modelo cooperativista agropecuário.
Como foi o ano de 2020 em relação a políticas para o cooperativismo?
Freitas – Olha, tem sempre alguma coisa acontecendo no Congresso Nacional. O Congresso é muito vivo, você sabe disso. Acontecem coisas e projetos e proposituras e emendas de todo tamanho. Eu acredito que foi um ano de bastante movimentação. Nós tivemos alguns projetos muito importantes tramitando. Eu acho que, só para você ter uma ideia, só na questão do coronavírus ou na mitigação de seus efeitos, nós atuamos em 82 projetos que tramitaram na Câmara federal. Todos eles para tentar mitigar efeitos negativos do coronavírus nas cooperativas. Coisas que parecem até singelas, por exemplo, a possibilidade de eu fazer uma assembleia virtual. As cooperativas, pela lei, têm que fazer suas assembleias gerais ordinárias. Eu não podia fazer essa assembleia se não fosse presencial, porque a lei não falava nada. Então nós tivemos que botar uma emenda em um projeto de lei que permitisse que fosse aceito que as cooperativas prestassem contas de uma maneira virtual. Isso é uma coisa singela, mas importantíssima para a estrutura da cooperativa
Outra coisa é a questão da liberação de crédito. Na possibilidade de manter as cooperativas como fornecedoras públicas das merendas escolares do PAA [Programa de Aquisição de Alimentos], dos programas do governo. Então, teve uma sequência de projetos importantes, mas acho que o principal deles foi a questão do crédito agrícola, a lei nova que foi editada e que trouxe muitas alterações no modelo de financiamento do crédito rural. Essa proposta veio do Congresso Nacional, mas com interferência muito forte do Executivo, e nós conseguimos manter uma posição, diria, confortável para o modelo de cooperativismo agropecuário dentro da conjuntura do aperto. Nós sabemos que a cobertura do governo é “cobertor de pobre”, então dentro da conjuntura nós conseguimos manter isso com um bom entendimento da ministra Tereza Cristina, até mesmo com a equipe do Ministério da Economia. Então acho que se conseguiu manter minimamente essas condições de crédito funcionando. Apesar de escasso e apesar da pandemia, o modelo de crédito rural está funcionando.
Por que algumas cooperativas foram tão bem neste ano?
Freitas – Eu acho que as cooperativas têm feito um investimento permanente, e a gente vem trabalhando isso há 20 anos. Não é um reflexo do imediato. Nós não estamos colhendo hoje o fruto de uma decisão do começo do ano ou da pandemia. São frutos de um trabalho de base, que nós chamamos de Programa de Autogestão. Na verdade, é um programa muito sério de investimento na profissionalização, melhoria da gestão e mesmo investimento na agroindustrialização. O papel da cooperativa é trabalhar pra que seu cooperado tenha acesso a mercado. Quanto mais nós subimos na cadeia de valor, quanto mais a cooperativa conseguir agregar valor ao produto do cooperado agricultor, melhor. Então esse é um papel de uma cooperativa moderna, fazer com que ele compre insumos cada vez mais baratos e, entre os insumos, estão tecnologia, conhecimento e informação para que ele consiga vender seu produto com mais valor agregado. E encurtar o caminho entre quem produz e quem consome
Esse é um trabalho que não é feito por uma decisão imediata. É um trabalho de longo prazo, que passa por um sério programa de capacitação, treinamento e investimento. E nós tivemos a capacidade das cooperativas de investir em plantas industriais mais modernas, armazéns mais modernos, tecnologia… Hoje eu tenho cooperativa atuando na área de formação da agricultura de precisão, que dá uma cobertura ao produtor pequeno, pequenininho, a mesma condição de um grande produtor que tenha condição de ter seu próprio drone pra fazer pulverização ou para fazer mitigação de lavoura. Um pequeno produtor cooperado tem acesso à mesma tecnologia. Isso dá uma melhoria geral e essa melhoria vem refletindo agora. Graças a Deus, nós estamos num bom momento de crise [mesmo enfrentando uma crise] e podemos mostrar isso.
A segunda questão importante é que eu acho que, hoje, a gente tem braço do cooperativismo através das cooperativas de crédito, as nossas cooperativas financeiras. Nós não temos uma independência total, trabalhamos com bancos de mercado, mas as cooperativas de crédito acabam sendo um suporte meio que familiar para o movimento cooperativista. Você tem ali o seu agente financeiro próprio. Apesar de ser uma cooperativa independente, ela é uma co-irmã, ela é uma cooperativa também. É um suporte paralelo e as cooperativas financeiras foram também muito bem. Os bancos recuaram, as cooperativas avançaram durante esse tempo da pandemia e isso nos trouxe algum conforto nesse aspecto.”
Como ficou o crédito neste ano?
Freitas – Na realidade, nós chamamos essa relação entre cooperativas de intercooperação. É um processo que é um princípio para nós. Toda vez que a gente consegue fazer negócio, a gente tem que priorizar negócios entre cooperativas, para fortalecer o próprio sistema. Mas como você disse, nós estamos vendo o mercado mudar. O modelo do crédito rural brasileiro está mudando. Nós sabemos que esse modelo não é sustentável no longuíssimo prazo. O modelo é baseado em uma política pública de crédito rural com equalização do Tesouro ou com definição de linhas de crédito ou dos depósitos a vista ou da poupança para o crédito rural. Esse modelo está em rota de colisão. Tende a não se sustentar no longo prazo. Mas é importante, ainda que sirva de balizador. No Brasil, nós temos uma concentração do sistema financeiro que é muito grande. Se você deixar isso livre, sem uma atuação da política pública, o risco é de o mercado nivelar para cima essa taxa de juros. Com o governo mantendo apenas minimamente as linhas oficiais, nós temos referência de baliza. Isso é importante. Por isso aquela lei que foi aprovada, a Lei do Teto Rural, é importantíssimo.
Segunda questão: as cooperativas de crédito também atuam como agentes moderadores. Porque elas são instituições financeiras de mercado, independente[mente] da matrícula, mas elas conseguem atuar criando uma referência muito mais competitiva no mercado e baixando a taxa de juros. Assim, as cooperativas financeiras acabam atuando de maneira a ajudar a nivelar esse processo por baixo.
A outra questão é o desenvolvimento de ferramentas novas. Quer dizer, nós estamos buscando cada vez mais as LCAs [Letras de Crédito do Agronegócio], os CRAs [Certificados de Recebimento do Agronegócio], essa “sopa de letrinhas” do Ivan Wedekin, que foi quem criou esses títulos de mercado e as novas ferramentas de financiar a agricultura. E eu acho que nós ainda temos muito a inovar. Nós vamos ter que ter muita criatividade para financiar o modelo de produção agrícola brasileiro. O Brasil já é o segundo maior país agrícola do mundo, tende a ir para o primeiro lugar, pelo espaço que ainda tem para crescer. E eu não estou falando de [que isso vá gerar] desmatamento, eu estou falando de manutenção das áreas produtivas.
Mas, para isso, nós vamos precisar ter muita criatividade no modelo de financiamento desse processo. E essa criatividade tem sido atividade constante nas cooperativas. A Coamo, por exemplo, é uma grande cooperativa, fantástica, muito bem administrada. A Credicoamo é a única cooperativa do Brasil que tem 100% dos insumos fornecidos aos cooperados segurados, todos os cooperados, porque eles criaram um modelo próprio de subvenção com criatividade para fazer seguro em todas as operações. Assim, o risco para um cooperado da Coamo é muito baixo, é praticamente zero. Você não tem o risco de uma frustração de safra não estar coberta pelo seguro. E nisso a cooperativa consegue trabalhar numa estabilidade muito maior, consegue planejar seu futuro de uma maneira muito melhor e com isso ter mais resultado. Você vê, como antecipação de sobra, parece que foram R$ 139 milhões, um belo 13º para os cooperados.
Como fica a possibilidade de retomada de 2021 para as cooperativas?
Freitas – Sou otimista, mas não posso ser tolo. Nós sabemos que o ano de 2021 é um ano de retomada, e ainda teremos um ano de muita dificuldade. Eu acho que nós ainda teremos muitos [anos assim] e teremos que estar muito preparados para vencer esses desafios. A criatividade e a inovação serão [necessidades] constantes. Nós vamos ser cobrados sobre isso durante todo tempo. Eu acredito cada vez mais no modelo da integridade. Tenho falado muito isso no cooperativismo: a humanidade hoje requer das instituições um processo de transparência, de compliance, muito mais claro. Eu costumo chamar de integridade, porque é um conjunto muito maior do que a questão de prestar contas, só de mostrar números. Integridade é que nem a história da mulher de César: não basta ser honesta, tem que mostrar a todo tempo claramente.
A gente tem um trabalho muito sério de integridade. As cooperativas têm que se comprovar íntegras, têm que transpirar integridade. Primeira coisa. A segunda é o investimento, que terá que ser muito forte: inovação, inovação, inovação. Nós temos que apostar na inovação, na juventude, nas novas cabeças, na capacidade de pensar fora da caixinha.
O terceiro [ponto], mas não menos importante: sustentabilidade. Não só ambiental, mas um processo maior. As cooperativas têm que ter muito mais compromisso com o futuro da humanidade. Passa por isso, inclusive, a sustentabilidade ambiental. Mas é preciso se ajustar à realidade, ao novo tom, à nova maneira de pensar da humanidade. As pessoas estão mudando a maneira de pensar, de reagir, de se comportar, de consumir. As cooperativas têm que estar muito ligadas nesse processo. E nós temos essa capacidade, porque a cooperativa é formada por gente. Se nós não soubermos lidar e perceber essa tendência das pessoas, ninguém mais vai conseguir e eu acredito que nós vamos estar ligados. Então, para mim, essas três colunas são fundamentais para o enfrentamento de 2021 e depois.
Agora, dá para acreditar que podemos superar, porque quem superou 2008, superou a crise de 2020, em plena pandemia, vai conseguir superar o pós-crise, o restabelecimento dos negócios.
É possível ver uma expansão maior do cooperativismo em outras partes do país, além do Sul?
Freitas – Não. Nós vamos caminhando para esse processo, em um trabalho de fomento muito grande. Mas cooperativismo não é uma coisa que nasce por decisão da diretoria da OCB. Não basta o Márcio aqui, com a sua diretoria, tomar uma decisão de que nós vamos apostar no crescimento, investir no crescimento do cooperativismo nas regiões Norte e Nordeste, que nós sabemos serem carentes de cooperativismo. Nós temos que trabalhar a base. Cooperativa você não cria, cooperativa nasce. Nasce das pessoas. Então nós temos que trabalhar uma base muito boa, temos que formar isso, mas ajudar um pouco mais para que, onde tenha bons exemplos, eles se propaguem. Eu costumo dizer que cooperativa é uma planta com singularidade que nasce muito melhor de muda do que de sementes. Não adianta vender a ideia, eu tenho que levar exemplos.
Eu estou com um trabalho muito forte de Norte e Nordeste no intercâmbio com cooperativas do Sul e Sudeste. Por exemplo, a Aurora lá de Santa Catarina, uma central de cooperativas que está muito forte em exportação, trabalha muito com carnes, leite e proteínas com valor agregado. Eu estou tentando fazer com que a Aurora apadrinhe o surgimento de cooperativas no interior do Nordeste que vão operar com leite, com ovinos e caprinos, com peixe. Então levar experiência para que se adequem ao modelo e ao capital territorial de outra região. Isso leva tempo, apesar de a gente ter muito interesse – estamos engajados inclusive num programa do governo federal de desenvolvimento do Nordeste pelo agro. Mas sabemos que vai levar um pouco mais de tempo. Os resultados não acontecerão já em 2021.
Fonte: Canal rural e mundocoop.com.br